quarta-feira, 22 de abril de 2015



Artur, em tapeçaria do séxulo XIV
A minha maior paixão na vida é ler. E dos livros, dois gêneros são meus favoritos: o épico, e o de fantasia. Quando me deparei com a lenda do Rei Artur, portanto, fiquei obcecada. A gama de teorias, livros, e conhecimentos que essa lenda traz é absurda; e eu, particularmente, já li boa parte das coisas que existem sobre o assunto. Sou apaixonada pela cultura celta – como ela é antiga e nova, moderna e conservadora, tudo ao mesmo tempo. Sou apaixonada pelos personagens e pelos dramas, pelo período histórico em que se desenrolou e como se reflete hoje tanto no entretenimento quanto nas religiões neo-celtas.
                                Guinevere ordenando Lancelote, por Edward Blair Leighton
A versão corriqueira do mito de Artur nada traz sobre questões de gênero. Filmes como “A espada era a lei” (1963), “Camelot” (1967) e “Monty Phyton – Em busca do Cálice Sagrado” mostram o lado heroico da história: cavaleiros, espadas, amores proibidos. A maioria dos filmes, aliás, focam exclusivamente no triângulo amoroso entre Artur, Guinevere e Lancelote. Não tiro o mérito de nenhuma dessas produções, pois ajudaram na sobrevivência da lenda – e Monty Phyton é divertidíssimo – mas em uma coisa elas pecam: o período histórico. Se a data é mencionada, não faz diferença: toda a caracterização é da Idade Média.

E isso importa, por uma série de motivos. Na Idade Média a cultura celta estava praticamente extinta, o cristianismo vivia seu apogeu e as mulheres eram meios de troca, donas do lar, e frutos do pecado, como a religião cristã dita. No período histórico em que se situa a real lenda de Artur, no final do século V, a situação era bem diferente, justamente por causa da representatividade feminina presente na vida das pessoas.
 Nesta data, a Bretanha (lugar onde se passa a história e berço da religião celta) era palco de uma insegurança generalizada. Com a invasão do Império Romano na província, e consequentemente com a adoção do cristianismo como religião oficial, os celtas que lá habitavam sofreram grande retaliação – esta se configura como uma prática comum dos povos conquistadores, acabar com qualquer resquício de identidade que o lugar possa possuir, e substituir pela deles. Além disso, a religião celta vai contra tudo que a cristã prega, e destruir a oposição de ideias sempre foi o âmago dos cristianizadores. No entanto, depois da queda do Império Romano, em 476 d.c, a religião celta foi lentamente retornando – ela nunca realmente se extinguiu, e sim viveu nas sombras, esperando o dia em que pudesse retornar com força total. E é neste período que se passa a história de Artur, o guerreiro cristão (ou Warlord - ele nunca foi rei, de acordo com a Historia Brittonum)  que tem de lidar com o celtismo, e cujo objetivo maior é unificar a Bretanha (os quatro reinos – ou feudos – e os devotos das duas religiões) contra a invasão dos anglo-saxões.
Há duas séries de livros que representam muito bem essa questão do misticismo e do feminino na lenda de Artur. Uma é “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley, e conta o mito através da visão das mulheres e da religião celta, e “As Crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell, que buscou contar a real história do personagem, baseado nos relatos da época. Com base nesses livros e nos ensinamentos da religião celta, farei um panorama sobre o celtismo e o feminismo e o relacionarei com a lenda de Artur.

Celtismo: uma religião matriarcal

A entidade adorada na religião celta é a Deusa. Ela é a própria terra, provedora de tudo e criadora da vida. Os celtas idolatravam a Deusa, e também as mulheres, pois elas eram as representantes e receptáculos desse ser superior. Dessa verdade única, se desenvolviam várias características que tornavam o celtismo ímpar. O casamento, por exemplo, era um mero contrato – havia um dote, mas este era pago pelos dois cônjuges, e a virgindade da moça tinha um preço, mas este só era símbolo de sua superioridade. Era uma honra deitar-se com uma mulher, porque assim deitava-se com a representante da Deusa, e esta era respeitada. O homem tinha sua função como representante do Deus-Esposo, e trabalhava para nutrir sua família, mas os trabalhos eram divididos igualmente. A mulher, por sua vez, não relegava ao homem a função de guerreiro, pois também a era. Tanto homens quanto mulheres representavam o papel de proteção da casa, desde que pudessem lutar. (D'EUABONNE, 1977, pp.29-40) 

Um exemplo de como a sociedade celta era matriarcalista é Boudica, a rainha celta que liderou a revolta contra o Império Romano em 61 d.C. Relatos de Dião Cássio, historiador do período, destacavam a grandeza de Boudica: ele a descreve como uma mulher altíssima e forte, carregando uma espada de fio duplo e temível em todos os sentidos da palavra. Na verdade, um historiador romano chamado Deodorizes Sickles observa: “As mulheres celtas são quase tão altas como os homens, e se estes chamarem suas esposas para lutarem lado a lado, uma tropa de mil romanos não aguentará e falhará.” (FOX, J.) De acordo com Gaia Lil, Alta Sacerdotisa da religião Wicca: “As mulheres celtas foram tão boas guerreiras quanto os homens, muito temidas por sua valentia e força, pois não eram vencidas fisicamente com facilidade. Elas sempre os precediam nas lutas, muitas vezes, surgiam nos campos de batalha como verdadeiras feras, que nuas, gritavam, uivavam, insultavam o inimigo com palavras, empunhando lanças e imitando a Deusa Guerreira "Morrigan".  
Embora houvessem chefes de família, a posição superior pertencia normalmente as mulheres, tanto nos cargos políticos ou religiosos. Os relatos da época falam de mulheres médicas, poetisas, educadoras, legisladoras e políticas. (D'EUABONNE, 1997)
No âmbito religioso, a Alta Sacerdotisa era a representante máxima da Deusa. À ela todos deviam escutar, e seus conselhos eram acatados sem titubeação. A Alta Sacerdotisa da época de Artur era Vivianne, e foi ela que, junto com Merlin, traçou o destino do rei. Suas decisões afetaram toda Bretanha, trazendo-a ao seu momento de glória e depois à sua queda. Merlin, é claro, é o mais lembrado – é uma figura masculina que torna-se mais crível para uma sociedade patriarcal. Mas ele era um druida, uma espécie de mago, e principalmente um aconselhador. 
Capa de "As Brumas de Avalon" - Morgana carregando a famosa espada de Artur, Excalibur
 Um marco na lenda de Artur é quando ele tem que participar do Grande Casamento. Esse evento se dá quando um representante do Deus-Esposo (no caso, Artur) tem que se deitar com uma representante da Deusa, para que o homem seja abençoado. No mito, embora existam várias versões, Artur acaba se deitando com sua irmã Morgana, e dessa reunião nasce Mordred (o antagonista de Artur).
 Um dos rituais celtas
Isso nos deixa claro o quanto a religião celta era livre com as relações sexuais, devido à um único motivo: para eles, o pecado não existia. O homem e a mulher eram templos e deviam fazer com o seu corpo o que bem entendessem (MARKALE, J. 1989).Inclusive, não só o Grande Casamento possuía relações sexuais; de fato, a maioria dos rituais era de alguma forma sexual, especialmente os de fertilidade. Além disso, relações de homossexualismo também eram aceitas, tanto femininas quando masculinas.
E é por esse motivo que eu fico insatisfeita com algumas versões da lenda, porque simplesmente não faz sentido existirem donzelas e princesas, prontas para serem resgatadas, quando os relatos originais da época dizem uma coisa tão diferente! Isso é só a mão do cristianismo, e portanto, do patriarcalismo, numa das lendas mais incríveis e que colaboram tanto com o feminismo. 

A religião celta característica desta área extinguiu-se na ocasião pós invasão dos anglo-saxões. Os poucos praticantes que sobraram se refugiaram na atual Bretanha (uma província da França) mas estes estavam muito amedrontados para continuarem a prática. Séculos depois, podemos ler sobre e experimentar um pouco dessa religião através dos neo-celtas, caracterizados principalmente pela Wicca. 

Referências Bibliográficas
 
BRADLEY, Marion Z. As Brumas de Avalon. Imago. 2009.
CORNWELL, Bernard. As Crônicas de Artur. Record. 2011.
          D'EUABONNE, Françoise. As mulheres antes do patriarcado .Trad.: Manuel de Campos e Alexandre de Freitas. Lisboa, Ed. Veja, 1977.
          MARKALE, Jean. La famme celte: mythe et sociologie . 8 e éd. Paris, Payot, 1989.

0 comentários:

Tecnologia do Blogger.

Popular Post

Seguidores