sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quem é dono do meu corpo?

                                                                                                 Escrito por Luiza Torrezani
Há pouco tempo comecei um trabalho na faculdade relacionado à violência sexual, e então meu professor perguntou: “Por que você está considerando a violência sexual uma forma pior de violência? Jogar uma pessoa de um prédio ou assassinar é uma forma de violência tão ruim quanto abuso sexual.”
Não. (!!)
 De acordo com uma pesquisa realizada com foco na “Percepção da sociedade sobre violência e assassinato de mulheres”, analisando a percepção de crueldade, o estupro é considerado um dos piores crimes que podem vir a ocorrer com alguém. Isso porque, além da agressão física, o estupro desmoraliza o indivíduo, gera vergonha, trauma, depressão, podendo afetar diretamente vários aspectos da vida da vítima, entre diversos outras consequências.  Por que então, em pleno século XX, com tantos avanços nas leis, há ainda tamanha dificuldade da sociedade, tanto em questões morais, quanto burocráticas, em questão de julgamento dos casos e dos criminosos, em prosseguir corretamente com essas situações de violação sexual?

O atual atraso que podemos perceber no mundo como um todo, em relação à como
lidar com o estupro, tem raízes muito mais profundas e muito mais antigas do que podemos imaginar.
Se formos analisar de forma breve e histórica as leis brasileiras, em 1890 o estupro era considerado pelo Código Penal como "crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje ao poder público", considerando uma violação à honra do homem, e não da mulher, afinal de contas, o homem era legítimo proprietário do corpo da mulher.
No Código Civil de 1916, o homem era considerado o chefe da família e a mulher era tida como “relativamente incapaz”.
Na Convenção de Genebra de 1949, o estupro era caracterizado como um “ataque à honra”, ao invés de ser definido como um crime de violência. Isso torna a situação mais problemática pelo fato de não mostrar devidamente a natureza violenta do estupro de acordo com o Direito Humanitário Internacional. Até os anos 1970, a tese de “legítima defesa da honra” era admitida para inocentar quem assassinava seu cônjuge.

Se sairmos um pouco do espectro brasileiro e formos analisar como outras culturas lidam com o estupro, podemos mencionar o Código de Hamurabi, que foi um dos primeiros códigos de leis conhecidos, feitos pelo rei da Babilônia no século 18  A.C, em que mencionava o estupro. Neste código, se houvesse o estupro de uma virgem, isso só seria considerado um delito porque era um crime contra a propriedade. Mas não a propriedade do corpo da mulher, e sim de seu pai. De acordo com esse mesmo código, se uma mulher casada fosse estuprada, ela seria executada juntamente ao seu violentador, afinal de contas, ela havia cometido um adultério.
Algo recente que representou uma tradição antiga ocorreu na série fictícia Game of Thrones, onde era um ritual mulheres serem sequestradas por invasores. Um costume de outra época se refere à Roma Antiga onde, no final de um casamento, havia o costume da mulher fingir ter medo e ser arrastada pelos amigos do noivo até o quarto do marido. Situações sempre apresentando a mulher como indefesa, impotente, que pode ser utilizada como objeto de barganha ou como um prêmio a ser conquistado.
No Velho Testamento estava exposto que estuprar uma virgem só era crime se o homem não se casasse com ela depois.
Loucura, certo? Afinal, quem quer se casar com seu estuprador, e viver todos os dias o trauma de ter sido violentado por uma pessoa, aquela pessoa que você vai chamar de “meu marido”?
Não, para nossa surpresa não são coisas de uma realidade distante, e essa lei vigorou até pouquíssimo tempo. Em 1940 foi redigido o Decreto-lei no 2.848, em 7 de dezembro. Este decreto continha os seguintes artigos:
Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
-pela morte do agente;
II -pela anistia, graça ou indulto;
III -pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso;
IV -pela prescrição, decadência ou perempção;
-pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;
VI - pela retratação do agente, nos casos em que a lei a admite;
VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;
VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contra da celebração.
Inacreditavelmente, este decreto vigorou até 2005, e só foi revogado pela Lei nº 11.106.
           O que fica nítido, pelo menos para mim, é que, essa impunidade do abuso do corpo do outro, que vem se perpetuando há séculos, continua existindo, e vai continuar refletindo perfeitamente o modelo patriarcal que, querendo ou não, ainda está enraizado em nossa sociedade, marginalizando cada vez mais a gravidade do assunto.
Analisando essas legislações, fica fácil perceber o caráter moral que a lei possui, não se preocupando realmente com a vítima e seu bem-estar, mas sim visando minimizar os danos morais produzidos na integridade, na honra, principalmente para sua família. Até o período em que a lei acima vigorava, estes tipos de crimes de violação sexual eram tidos como “ crimes contra os costumes”, e só então em 2009, a partir da sanção da Lei nº 12.015, o estupro passou a ser considerado um “crime contra a dignidade e liberdade sexual”. Menicucci et al. (2005, p. 377) citou, em 2009, que o que constituiria crime seria a “agressão à sociedade por intermédio do corpo feminino. É como se o homem (pai ou marido) fosse tocado em sua integridade moral pela violência sexual vivenciada pela mulher”. 
Para evidenciar como a mentalidade da população ainda é de considerar a vítima culpada e não responsabilizar corretamente o agressor, temos uma pesquisa divulgada pelo IPEA, “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência”, onde foi feito o questionamento se, “mulheres que usam roupa mostrando o corpo merecem ser atacadas”, e o resultado foi que 65,1% dos entrevistados afirmaram que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Além disso, foi constatado que, para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria menos estupros.

Susan Browmiller utilizou de uma teoria feminista para analisar o estupro em uma perspectiva do poder. Para ela “o estupro é um ato motivado pela necessidade de dominar os outros e tem pouco ou nada a ver com o desejo sexual”. Browmiller diz também que “todo estupro é um exercício de poder.” (BROWNMILLER, 1975, p. 259).
Assim como foi dito anteriormente, que a cultura do estupro sempre esteve presente em nossa sociedade, em suas mais variadas formas, a autora considera que o estupro é um mecanismo de controle historicamente difundido, mas amplamente ignorado, mantido por instituições patriarcais e relações sociais que reforçam a dominação masculina e a subjugação feminina.
Com isso é possível concluir que a cultura do estupro é um tema que carece de mais atenção, há a necessidade da criação de procedimentos normativos mais eficazes, visando tratar as peculiaridades de cada situação, criando um Sistema Internacional de proteção à mulher, incentivando concomitantemente um debate global, que dê maior visibilidade ao tema, demonstrando sua real importância no cenário moderno, atentando para as particularidades internas de cada nação.

Bibliografia:

 


BROWNMILLER, Susan. Against Our Will: Men, Women, and Rape. Pelican Books, 1975.

 

 IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Nota técnica. 2014.  Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf
Como silenciamos o estupro. Julho de 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/comportamento/como-silenciamos-o-estupro>
O casamento como Causa Extintiva de Punibilidade para os Crimes de Estupro. 2013. Disponível em: <http://fabriciocorrea.jusbrasil.com.br/artigos/121941324/o-casamento-como-causa-extintiva-de-punibilidade-para-os-crimes-de-estupro>
Sexismo e eleições: estupro é sempre uma questão de poder. Outubro de 2014. Disponível em: < http://www.insurgencia.org/sexismo-e-eleicoes-estupro-e-sempre-uma-questao-de-poder/>

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