segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Por Nina Lavezzo de Carvalho


"É uma coisa muito recorrente, mas geralmente você não sabe que você está num relacionamento abusivo. Uma parte de você sabe, mas você meio que não sabe ao mesmo tempo." (JOUTJOUT PRAZER, 2015). Começo esse texto citando a famosa diva dos vlogs atuais, JoutJout Prazer, e  vou fazer o mesmo adendo que ela faz em seu vídeo NÃO TIRA O BATOM VERMELHO (do qual retirei a citação acima): um relacionamento abusivo não necessariamente acontece entre homens e mulheres, pode acontecer entre casais homo e em outros tipos de relacionamento que envolvam mais que duas pessoas. Além disso, um relacionamento abusivo também não necessariamente é uma situação de opressão do homem sobre a mulher. Porém, vamos focar aqui nos casais hétero com relacionamentos abusivos em que o homem é violento, no sentido amplo, para com a mulher. O motivo para isso é simples: se "Em todo mundo, pelo menos uma em cada três mulheres já foi espancada, coagida ao sexo ou sofreu alguma outra forma de abuso durante a vida. O agressor é, geralmente, um" homem, "membro de sua própria família" (DAY, TELLES, ZORATTO, AZAMBUJA, MACHADO, SILVEIRA, DEBIAGGI, REIS, CARDOSO & BLANK, 2003), precisamos falar sobre relacionamentos abusivos.

NÃO TIRA O BATOM VERMELHO! de JoutJout

Baseada no texto de Shanana Rasool, minha intenção é falar um pouco sobre o que envolvem os relacionamentos abusivos e, principalmente, responder à pergunta: por que tantas mulheres têm dificuldade de sair desse tipo de relacionamento? Você provavelmente já sabe alguns motivos, principalmente se já passou por essa situação (como a maioria de nós, minas), mas aí estão mais alguns para entendermos como o machismo trabalha até mesmo nos nossos relacionamentos íntimos.
A violência contra as mulheres é a infração aos direitos humanos mais comum no mundo. A Assembleia Geral da ONU, em 1933, definiu a violência contra a mulher como:
"Qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual, psicológico ou sofrimento para a mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, quer ocorra em público ou na vida privada" (in: DAY, TELLES, ZORATTO, AZAMBUJA, MACHADO, SILVEIRA, DEBIAGGI, REIS, CARDOSO & BLANK, 2003).
 Série Boundaries, da fotógrafa Allaire Bartel, retrata violência contra as mulheres.
A partir disso, podemos conceituar um relacionamento abusivo como uma relação haja entre os membros abusos que podem variar da violência psicológica à física. O abuso costuma se manifestar com mais frequência em manipulações emocionais por parte do agente da violência, que faz a vítima se sentir inferior, dependente ou com medo dele. As consequências emocionais disso perpetuam-se no tempo, em forma de trauma, depressão, paranoia ou medo de se relacionar intimamente com outras pessoas. Os perigos de continuar em um relacionamento abusivo são vários, dentre eles: a destruição da "autoestima da mulher, expondo-a a um risco mais elevado de sofrer de problemas mentais", o estupro, a agressão e, finalmente, feminicídio.
"A agressão do parceiro íntimo – também conhecida como violência doméstica, maus-tratos ou espancamento da esposa – é, quase sempre, acompanhada de agressão psicológica e, de um quarto a metade das vezes, também de sexo forçado. [...] Na sua forma mais grave, a violência leva à morte da mulher. Sabe-se que de 40 a 70% dos homicídios femininos, no mundo, são cometidos por parceiros íntimos." (DAY, TELLES, ZORATTO, AZAMBUJA, MACHADO, SILVEIRA, DEBIAGGI, REIS, CARDOSO & BLANK, 2003).
 Série Boundaries, da fotógrafa Allaire Bartel, retrata violência contra as mulheres.
Muitas vezes não temos conhecimento de que estamos em um relacionamento abusivo. É difícil ver de fora e perceber os sinais, principalmente quando eles não se traduzem em medidas drásticas como agressão física ou afastamento de amigos e familiares. Na maioria das vezes traduzidos os primeiros indícios de um relacionamento abusivo como possessividade e/ou ciúme, e aí está o perigo em acreditar nos velhos dizeres de "ciúme é uma forma de demonstrar amor". [Quer saber se está em um relacionamento abusivo? Bem, além das dicas da JoutJout, tem uma lista com 7 sinais que indicam esse tipo de relação bem aqui, mas a palavra final é sua, baby, só você conhece o que você vive]. Feliz ou infelizmente, não tem ninguém além de você mesma que pode te libertar dessa relação de modo que sua saúde psicológica volte a ser sã.

Contudo, mesmo sabendo que o relacionamento nos faz mal, não é fácil sair dele. Nem um pouco fácil. Os motivos variam de modo muito amplo, porém "Uma série de estudos em contextos variados indica que o amor tem um papel importante na decisão de mulheres de continuar em relacionamentos abusivos" (RASOOL, 2013). Então, vamos tratar do amor.

 Cena do tão esperado beijo de Branca de Neve e seu príncipe encantado, que a despertaria por ser seu "amor verdadeiro"; em Branca de Neve e os Sete Anões.

A cultura notadamente eleva o amor a um patamar superior às outras emoções: divino, romântico, sexual ou transcendente, o amor é o mote de religiões, canções, poesias, livros, pinturas, desenhos, filmes, contos, danças, etc. Para alguns, como Schopenhauer ou Platão, o amor está de fato ligado à vontade de viver, a mim não cabe denotar o quanto isso é ou não verdade universal. Contudo, nas narrativas nos é proliferado que o amor é a chave da felicidade e que a vida sem ele não tem sentido ou razão de ser ( já diz Vinicius, em sua música com Baden Powell, Berimbau: "e se não tivesse o amor? melhor era tudo se acabar..."). A idealização deste sentimento, vem com a noção de amor romântico. Aquele amor de contos de fadas, do casal principal das novelas, o amor dos filmes de comédia romântica. "Embora seja de conhecimento geral que o amor é uma emoção, (...) 'recentemente emoções não tem sido consideradas como a preservação exclusiva do interior dos indivíduos, mas como construções discursivas sociais'" (BELLI, HARRÉ & ÍÑIGUEZ, in: RASOOL, 2013). Dessa forma, o amor que sentimos não vem só dos nossos sentimentos e interioridade, mas também das construções sociais acerca do amor com as quais tivemos contato durante nossa vida. E mais, a noção de amor romântico é tão perpetuada que tem um caráter quase universal (RASOOL, 2013).

Cena do também tão esperado beijo em Uma Linda Mulher.

"Em relacionamentos íntimos,  realidade e ilusão caminham de mãos dadas" (FLETCHER & KEER, in: RASOOL, 2013). Assim, a realidade de um romance que se transforma em casamento, pode transformar-se facilmente na ilusão de um relacionamento que duraria a vida toda e para o qual ambos se esforçariam, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza. Se esse é o caso, muitas mulheres assumem o sofrimento ao qual estão submetidas como parte dos sacrifícios do casamento. A esperança de que o casamento e/ou o amor em que estão envolvidas realize o "felizes para sempre" é uma das grandes razões para que mulheres permaneçam em relacionamentos abusivos. 

‘‘It was the feelings I still had for him for the duration of our marriage, 10 years, and the abuse has been for 10 years... The reason why I never ended it, it’s because I truly felt that I love this man and I must stand by him. I was too infatuated with the whole idea of our marriage, our partnership... I had high hopes [for our life]... I’m deeply disappointed that it didn’t come true. The idea I had of marriage, a happy life with my husband, the father of my children, it was so rosy...’’ (SHAMIMA, in: RASOOL, 2013).

Sem dúvidas isso está relacionado com as nossas concepções acerca do amor, o qual relaciona-se com sofrimento, sacrifícios e perdas em nome da grandiosa felicidade que o sentimento em sua completude traria. Segundo um estudo sulafricano, 41.7% das mulheres entrevistadas acreditavam que suas culturas mantinham a agressão como significado de amor e 25.2% pessoalmente concordavam com isso (JEWKES, in: RASOOL, 2013)

 Coração com veias sanguíneas.

A permanência na relação também pode estar ligada às antigas promessas do relacionamento, isso é, na crença de que podem voltar a ser felizes como eram no princípio. Essa conduta é especialmente comum porque o agente do abuso conscientemente oscila entre momentos de carinho e de agressão física ou verbal.
‘‘Sometimes he is not so bad, sometimes he is very lovely and caring. But always with the loving and caring there are always accusations or something wrong’’ (IRENE, in: RASOOL, 2013).
"O comportamento dos abusadores pode ser, portanto, contraditório e confuso, e as mulheres parecem focar nas pequenas qualidades que há, na esperança de que os abusos terminem" (RASOOL, 2013).

A questão econômica e familiar também é importante. Muitas mulheres com envolvimento mais duradouro têm dependência financeira dos abusadores e/ou não deixam seus parceiros em prol da criação dos filhos. Desse modo, "a pobreza aumenta a probabilidade das mulheres serem vítimas de violência. [...] A reação da mulher à violência é frequentemente limitada pelas opções à sua disposição" (DAY, TELLES, ZORATTO, AZAMBUJA, MACHADO, SILVEIRA, DEBIAGGI, REIS, CARDOSO & BLANK, 2003).

A dependência psicológica é também um dos frutos gerados pela violência psicológica. Neste sentido, a vítima sente medo de ficar sozinha após o término do relacionamento ou de não encontrar outra pessoa para partilhar a vida ou que, mesmo que encontre, essa pessoa não a ame tanto quanto o abusador. Esses medos são resultado da constante depreciação que o agressor faz da vítima em seus discursos, gerando baixas autoconfiança e autoestima.

 "Você estava sozinhx antes de te deixarem". Estar em um relacionamento nem sempre significa não estar só. Ter a coragem de sair de um relacionamento ruim pode abrir as portas para novas experiências.

Embora as  determinantes para a saída do relacionamento possam ser bem concretas, "situações como aumento do nível da agressão, violência afetando os filhos e apoio sociofamiliar são determinantes na decisão de sair do relacionamento" (DAY, TELLES, ZORATTO, AZAMBUJA, MACHADO, SILVEIRA, DEBIAGGI, REIS, CARDOSO & BLANK, 2003); a saída de um relacionamento abusivo também está ligada à nossa idealização do amor. Ao tomar consciência da violência que está sofrendo, a mulher passa por um processo de transformação do amor em ódio.
‘The love I had for him just died slowly and slowly and I promised myself that if I’m going to start hating him I’m going to leave him’’ (SHAMIMA, in: RASOOL, 2013).
O príncipe do amor romântico se transforma em fera. "Parece que o ponto de conversão para procurar ajuda é quando a mulher percebe que sua noção de casamento romântico e felizes para sempre é uma ilusão" (RASOOL, 2013). É o espaço criado pela percepção de que o abusador não a ama ou ao menos não se preocupa com ela, mas, pelo contrário, é agressivo e a machuca de diversas formas, isso é, o espaço criado pela compreensão da realidade é o que possibilita à mulher terminar o relacionamento, buscar ajuda e/ou sair de casa (em casos mais duradouros). Nesses casos, sai amor, entra ódio, mas finalmente por uma boa razão.


"Aprender a amar a si mesmo é o maior amor de todos".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DAY, Vivian Peres; TELLES, Lisieux Elaine de Borba; ZORATTO, Pedro Henrique; AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; MACHADO, Denise Arlete; SILVEIRA, Marisa Braz; DEBIAGGI, Moema; REIS, Maria da Graça; CARDOSO, Rogério Göettert & BLANK, Paulo. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. Relatórios. Violência doméstica - Day et alii. R. Psiquiatr. RS, 25 (suplemento 1): 9-21, abril 2003.
RASOOL, Shahana. Re-constructing discourses of love to facilitate help-seeking after woman abuse. Agenda: Empowering women for gender equity. 14/06/2013.
WIKIPEDIA. Amor. Wikipédia, a enciclopédia livre. Acesso: 02/11/2015.
YOUTUBE. NÃO TIRA O BATOM.  JoutJout Prazer. Disponibilizado por: JoutJout Prazer, 26/02/2015. 8'33''. Acesso: 02/11/2015.
YOUTUBE. Schopenhauer on Love. Philosophy: A Guide to Happiness. Apresentado por Alain de Botton. Disponibilizado por Spookybuk. 24'05''. Acesso: 02/11/2015.

*O título é trecho da música Mora na Filosofia, de Caetano Veloso.

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